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As Providências

             O leitor ouviu falar neste livro de duas classes de acontecimentos, e apenas duas, os milagres e os acontecimentos naturais. Os primeiros não estão interligados com a história da natureza em retrocesso, i.e., a época antes de sua ocorrência, mas os últimos estão. Muitas pessoas piedosas falam, porém de certos eventos como sendo “providenciais” ou “providências especiais” sem dizer com isso que sejam milagrosos. Isto implica geralmente numa crença que, em separado dos milagres, alguns eventos são providenciais num sentido em que outros não são. Dessa forma, alguns julgaram que as condições atmosféricas que permitiram a retirada da grande parte de nosso exército de Dunquerque foi algo “providencial”, de certa forma em que o tempo como um todo não é providencial. A doutrina cristã de que alguns acontecimentos, embora não sejam milagres, são mesmo assim respostas à oração pareceria a princípio envolver esta ideia. Acho difícil conceber uma classe intermediária de eventos que não sejam nem milagrosos nem simplesmente “comuns”. 

O tempo em Dunquerque foi ou não foi aquele que a história física prévia do universo, por seu próprio caráter, inevitavelmente produziria? Se foi, como pode ter sido “especialmente” providencial? Se não foi, tratou-se então de um milagre. Parece-me, portanto, que devemos abandonar a ideia de que existe qualquer classe especial de acontecimentos (em separado dos milagres) que possa ser distinguida como “especialmente providencial”. A não ser que devamos abandonar o conceito de Providência de uma vez por todas, e com ele a crença na oração eficaz, segue-se que todos os eventos são igualmente providenciais: Se Deus dirige realmente o curso dos acontecimentos, ele então governa o movimento de cada átomo a cada momento; “nenhum pardal cai em terra” sem essa orientação. A “naturalidade” dos eventos naturais não consiste em estarem de alguma forma fora da providência de Deus, mas consiste na sua interligação mútua dentro de um espaço-tempo comum, de acordo com o padrão estabelecido das “leis”. A fim de obter uma ideia de alguma coisa, é às vezes necessário começar com uma ideia errada e depois corrigi-la. 

A falsa ideia da Providência (falsa por representar Deus e a natureza como estando ambos contidos num Tempo comum) seria como segue. Cada evento na natureza resulta de outro acontecimento anterior e não das leis da natureza. Em análise final, o primeiro evento natural, qualquer fosse ele, ditou cada um dos demais eventos. Isto é, quando Deus no momento da criação introduziu o primeiro evento na estrutura das “leis” deu o primeiro impulso à bola. Ele determinou toda a história da natureza. Antevendo cada uma das partes dessa história, Ele propositou cada parte dela. Se Ele tivesse desejado condições atmosféricas diferentes em Dunquerque, teria feito o primeiro evento diferir um pouco. O tempo que na verdade tivemos é, portanto, providencial no sentido mais estrito; foi decretado, e decretado com um propósito, quando da criação do mundo, mas não mais (embora de forma mais interessante para nós) do que a precisa posição neste momento de cada átomo no anel de Saturno. Segue-se (retendo ainda nossa falsa ideia) que todo evento físico foi determinado para servir um grande número de propósitos. Devemos supor então que Deus, ao pré-determinar o tempo em Dunquerque, deve ter considerado perfeitamente o efeito que teria não apenas sobre o destino de duas nações como também (o que é incomparavelmente mais importante) sobre todos os indivíduos envolvidos de ambos os lados, todos os animais, vegetais e minerais a uma determinada distância, e finalmente sobre cada átomo no universo. Isto pode parecer excessivo, mas na realidade estamos atribuindo ao Onisciente apenas um grau infinitamente superior do mesmo tipo de habilidade que um simples romancista humano exerce diariamente ao construir o seu enredo. Suponhamos que eu esteja escrevendo um romance. Tenho nas mãos os seguintes problemas: (1) O Velho Sr. A precisa morrer antes do capítulo 15. (2) 

Será melhor que morra de repente, pois tenho de impedir que altere seu testamento. (3) Sua filha (minha heroína) precisa ficar fora de Londres durante pelo menos três capítulos. (4)Meu herói tem de recuperar a imagem perante a heroína, que perdeu no capítulo 7.(5) Aquele arrogante jovem B, que precisa melhorar antes do final do livro, tem de receber um choque moral a fim de deixar de ser convencido. (6) Não decidimos ainda sobre o emprego de B; mas todo o desenvolvimento do seu personagem exige que tenha um emprego e que o vejamos realmente trabalhando. Como irei introduzir essas seis coisas?... Já sei. E se houvesse um acidente de trem? O Velho A morreria nele, e isso encerra a questão a seu respeito. De fato, o acidente pode ocorrer enquanto viaja para Londres a fim de consultar seu advogado exatamente com a ideia de modificar seu testamento. O que seria mais natural do que sua filha acompanhá-lo? Faremos com que sofra ferimentos leves no acidente, e isso impedirá sua chegada a Londres por quantos capítulos quisermos. E o mocinho pode encontrar-se no mesmo trem, mostrando-se muito calmo e heroico durante o acidente, provavelmente, salvará a heroína de um vagão em chamas. Isso decide o meu quarto ponto. E o jovem e convencido B? Faremos dele o sinaleiro cuja negligência provocou o desastre. Isso lhe dá o seu choque moral e também o liga ao enredo principal. De fato, no momento em que pensamos no acidente de trem, esse evento único resolverá seis problemas aparentemente isolados. Esta é sem dúvida, de certa forma, uma imagem intoleravelmente enganadora: primeiro porque (exceto com relação ao convencido B) não estive pensando no bem final de meus personagens, mas na diversão de meus leitores. Segundo, porque estamos simplesmente ignorando o efeito do acidente ferroviário sobre todos os outros passageiros do trem; e finalmente porque fui eu que fiz B transmitir o sinal errado. Isto é, embora eu pretenda que ele possua livre arbítrio, na verdade não tem. Apesar dessas objeções, porém, o exemplo talvez sirva para sugerir como o engenho divino poderia inventar o “enredo” físico do universo de maneira a fornecer a resposta “providencial” às necessidades de inúmeras criaturas. Mas algumas dessas criaturas possuem livre arbítrio. É neste ponto que devemos começar a corrigir a ideia admitidamente falsa da Providência que estivemos usando até agora. Essa imagem, como deve lembrar, era falsa por representar Deus e a natureza habitando um Tempo comum. Mas é provável que a natureza não esteja realmente no Tempo e quase certo que Deus não está. O tempo é provavelmente (como a perspectiva) o modo de nossa percepção. Não existe, portanto, na verdade questão de Deus, em um ponto no tempo (o momento da criação) adaptar a história material do universo em antecipação aos atos voluntários que você ou eu devemos realizar num ponto posterior no Tempo. Todos os eventos físicos e todos os atos humanos estão presentes para Ele num eterno Agora. A liberação de vontades finitas e a criação de toda a história material do universo (relacionada com os atos dessas vontades em toda necessária complexidade) é para Ele uma única operação. 

Deus, neste sentido, não criou o universo há muito tempo, mas Ele o cria neste minuto a cada minuto. Suponhamos que eu encontre uma folha do papel que já contenha uma linha preta ondulante traçada nela. Eu posso agora me sentar e traçar outras linhas (talvez em vermelho) cuja forma combina com a linha preta, a fim de formar um desenho. Vamos supor agora que a linha preta original seja consciente. Mas ela não é consciente ao longo de todo o seu comprimento de uma só vez, mas somente em cada ponto desse comprimento, um por vez. A sua consciência está de fato viajando ao longo dessa linha da esquerda para a direita, retendo o ponto A apenas como uma memória ao alcançar B e incapaz de tornar-se consciente de C até deixar B. Vamos dar também livre arbítrio a esta linha negra. Ela escolhe a direção a seguir. A forma ondulante especial que possui é exatamente aquela que deseja ter. Mas embora ela só perceba sua forma escolhida momento a momento e não sabe no ponto D que direção resolverá seguir no ponto F, eu posso ver sua forma inteira e de uma só vez. Em cada momento ela irá encontrar minhas linhas vermelhas à sua espera e adaptadas a ela. Isso é natural, porque eu, ao compor o desenho preto vermelho total tenho diante de mim todo o curso da linha preta e o levo em consideração. Não se trata então de uma impossibilidade, mas simplesmente de meu engenho como desenhista inventar linhas vermelhas que a cada ponto tenham uma relação correta não só com a linha preta, mas umas com as outras, a fim de encher todo o papel com um desenho satisfatório. A linha preta representa neste exemplo uma criatura com livre arbítrio, as linhas vermelhas representam os eventos materiais, e eu represento Deus. 

O modelo seria naturalmente mais preciso se eu estivesse fazendo tanto o papel como o padrão e se houvessem centenas de milhares de linhas pretas e não só uma, mas para manter a simplicidade devemos fazer isso. Veremos que se a linha preta dirigisse orações a mim, eu poderia (se quisesse) atendê-las. Ela ora para que, ao chegar ao ponto N, encontre as linhas vermelhas arranjadas ao redor dele de certa forma. Essa forma, pelas leis do desenho, pode exigir um equilíbrio mediante outros arranjos de linhas vermelhas em partes por completo diferentes do papel algumas no alto ou embaixo, tão distantes da linha preta que ela nada sabe a esse respeito: algumas tão à esquerda que surgem antes do início da linha preta, e outras tão à direita que surgem depois dela ter terminado. (A linha negra chamaria essas partes do papel de “tempo antes de meu nascimento”, e “tempo depois de minha morte”). Mas essas outras partes do padrão exigidas por aquela forma vermelha que a Linha Negra seja em N, não impedem que eu atenda à sua oração. Pois todo o seu curso esteve visível à minha frente desde o momento em que olhei para o papel; e suas exigências no ponto N estão entre as coisas que tomei em consideração ao decidir como padrão total. 

A maioria de nossas orações, se plenamente analisadas, pedem um milagre ou acontecimentos cujas bases tiveram de ser lançadas antes de meu nascimento, no começo do universo. Mas para Deus (embora não para mim), tanto eu como a oração que fiz em 1945 estavam tão presentes na criação do mundo como estão agora e estarão daqui há um milhão de anos. O ato criativo de Deus é eterno e eternamente adaptado aos elementos “livres” dentre dele: mas esta adaptação eterna entra em nosso consciente como uma sequência, uma oração e uma resposta. Seguem-se duas deduções: 1. As pessoas perguntam com frequência se um dado acontecimento (não um milagre) foi realmente uma resposta à oração. Penso que se analisarem suas ideias, descobrirão que sua pergunta é: “Deus fez isso com um propósito especial ou teria acontecido de qualquer forma como parte do curso natural de eventos?” Mas isto (como a velha pergunta: “Você deixou de bater em sua mulher?”) torna qualquer das duas respostas impossível. Na peça Hamlet, Ofélia sobe num ramo que pende sobre um rio.  O ramo quebra e ela cai e se afoga. O que você responderia se alguém perguntasse: “Ofélia morreu porque Shakespeare quis que morresse por razões poéticas naquele momento ou porque o ramo quebrou?” Penso que teríamos de dizer: “Por ambas as razões”. Cada acontecimento na peça resulta de outros na mesma peça, mas também todos eles acontecem por que o poeta assim o deseja. Todos os eventos na peça são shakespearianos; e de igual forma todos os acontecimentos no mundo real são providenciais. Todos os acontecimentos na peça, porém, surgem (ou deveriam surgir) da lógica dramática dos acontecimentos. Assim também, todos os eventos no mundo real (exceto os milagres) surgem devido a causas naturais. 

A “Providência” e “o princípio da causalidade natural” não são alternativas; ambos determinam cada evento por serem ambos uma mesma coisa. 2. Quando estamos orando sobre o resultado, por exemplo, de uma batalha ou uma consulta médica, a ideia de que o evento já está decidido de uma ou outra forma cruza muitas vezes nossa mente. Não acredito que esta seja uma boa razão para deixar de orar. O evento com certeza já foi decidido, num certo sentido ele foi mesmo “antes de todos os mundos”. Mas uma das coisas tomadas em consideração ao decidi-lo, e, portanto uma das coisas que realmente fazem com que aconteça, pode ser justamente essa oração que estamos oferecendo. Assim, por mais chocante que pareça, concluo que ao meio-dia podemos tornar-nos causas parciais de um evento ocorrendo às dez da manhã. (Alguns cientistas achariam isto mais fácil do que pensa o povo.) A imaginação irá sem dúvida tentar pregar-nos toda sorte de peças neste ponto. Ela perguntará: “Então se eu deixar de orar a Deus, Ele poderá mudar o que já aconteceu?” Não. O acontecimento já se realizou e uma de suas causas foi o fato de você estar fazendo tais perguntas em vez de orar. Ela perguntará: “Então se eu começar a orar, Deus retrocederá, alterando o que já aconteceu?” Não. O evento já ocorreu e uma de suas causas é a sua oração de agora. Assim sendo, algo depende realmente de minha decisão. Meu ato voluntário contribui para a forma cósmica. 

Essa contribuição é feita na eternidade ou “antes de todos os mundos”; mas minha consciência de contribuir me alcança num ponto particular na série do tempo. A seguinte pergunta pode ser feita: Se podemos orar racionalmente por um evento que deve de fato ter acontecido ou deixado de acontecer várias horas atrás, por que não podemos orar por um acontecimento que sabemos não ter acontecido? Por exemplo, orar pela segurança de alguém que, como sabemos, foi morto ontem. O que faz a diferença é precisamente o nosso conhecimento. O evento conhecido declara a vontade de Deus. E psicologicamente impossível orar por aquilo que sabemos ser inatingível; e se fosse possível, a oração seria um pecado contra o dever de submetermos à vontade de Deus conhecida. Resta ainda uma consequência a ser concluída. Nunca é possível provar empiricamente que um determinado acontecimento, não milagroso, foi ou não uma resposta à oração. Sendo não milagroso, o cético pode sempre apontar para as suas causas naturais e dizer: “Por causa disso ele teria acontecido de qualquer modo”, e o crente pode sempre responder: “Mas por terem sido apenas elos numa cadeia de acontecimentos, dependendo de outros elos, e a cadeia inteira dependendo da vontade de Deus, eles podem ter ocorrido porque alguém orou”. A eficácia da oração, portanto, não pode ser confirmada ou negada sem um exercício da vontade aceitando ou rejeitando a fé à luz de toda uma filosofia. 

A evidência experimental não existe de lado algum. Na sequência M.N.O., o evento N, a não ser que se trata de um milagre, é sempre causado por M e causa O; mas a verdadeira questão é se a série total (digamos AZ) se origina ou não numa vontade que pode tomar as orações humana sem consideração. Esta impossibilidade da prova empírica é uma necessidade espiritual. O homem que soubesse empiricamente que um evento tinha sido causado pela sua ação, sentir-se-ia como um mágico. Sua cabeça ficaria virada e seu coração se corromperia. O cristão não deve perguntar se este ou aquele acontecimento ocorreu em resposta a uma oração. Ele deve, porém, crer que todos os eventos, sem exceção, são respostas à oração, no sentido de que quer sejam atendidas ou recusadas, as orações de todas as pessoas envolvidas e suas necessidades foram tomadas em consideração. Todas as orações são ouvidas, mas nem todas atendidas. Não devemos imaginar o destino como um filme desenrolando-se em sua maior parte por si mesmo, mas no qual nossas orações podem às vezes inserir elementos adicionais. Pelo contrário, o que o filme exibe para nós, enquanto se desenrola, contém os resultados de nossas orações e de todos os demais atos que praticamos. Não se trata de um evento ter ocorrido por causa da sua oração. Quando o evento pelo qual você orou ocorre, sua oração sempre contribuiu para ele. Quando o evento oposto ocorre, sua oração não foi ignorada, mas considerada e recusada, para o seu bem final e para o bem de todo o universo. (Por exemplo, em última análise, pode ser melhor para você e para todos, que outras pessoas, inclusive as perversas, exerçam livre arbítrio; em vez de proteger você da crueldade e da traição, transformando os seres humanos em uma raça de autômatos). Mas isto é uma questão de fé e deve permanecer nessa conformidade. Segundo penso, você irá apenas enganar-se se tentar descobrir uma evidência especial para ela em alguns casos, mais do que em outros.


C.S. Lewis

Milagres, p. 264-275

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