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O mito da “nação cristã”!

No domingo passei alguns minutos assistindo, ao vivo, as cerimônias do Jubileu de Diamante da rainha Elizabeth II. A rainha inglesa, em toda a sua pompa, recebia inúmeras homenagens de seus súditos. Apesar de crer que a monárquica Grã-Bretanha é mais republicana que a República Federativa do Brasil, ainda assim vejo como bem exótico tanta festa em torno de uma pessoa.

Bom, escrevo isso para lembrar que a rainha é chefe da Igreja Anglicana (em inglês: Supreme Governor of the Church of England). Isso faz do Reino Unido uma terra cristã? Absolutamente não! Não por causa de Elizabeth II, mas sim porque nunca houve e nunca haverá uma nação cristã. O cristianismo é uma religião de indivíduos e não de coletivos. Nós podemos falar em uma “cultura com influência cristã”, mas nunca em “nação cristã”. Ora, “nação cristã” é puro mito!

Quando vejo John MacArthur Jr. lamentando em uma pregação que os Estados Unidos deixaram de ser uma “nação cristã” fico me perguntando quando os Estados Unidos foram “cristãos”. Muitos cristãos americanos alimentam a fantasia de que o Pais Fundadores, como são chamados os líderes políticos que assinaram a Declaração de Independência ou participaram da Revolução Americana, eram cristãos fervorosos e pautavam suas decisões nos princípios bíblicos. Mas é bom lembrar que boa parte desses líderes eram simplesmente deístas. E nessa utopia muitos sonham com um passado idílico que nunca existiu.


É fato que o puritanismo na Nova Inglaterra influenciou a cultura americana. Isso ninguém contestará, mas daí supor que o país era cristão já é demais. E o que seria uma nação cristã? Ora, cristão é um seguidor de Cristo, logo, como o cristianismo seria formador de Estado se o Reino de Cristo não é deste mundo (João 18.36)? Seria cristão um Estado com base racialista, tribalista ou nacionalista? O “cristão’ Império Romano justificava suas guerras com um discurso religioso, sendo que isso não faria dos romanos ainda mais distantes do cristianismo de Cristo?

Não escrevo isso com um ranço bocó de antiamericanismo de uma teologia autóctone, pois nem os Estados Unidos e nenhum outro país tiveram algum momento cristão. E o Brasil não será uma nação cristã, como cantam os ufanistas da Teologia do Domínio. Muitos também acham que a Europa já foi cristã. Quando? A Europa dos colonizadores? A Europa das guerras intermináveis? A Europa da Revolução Francesa? A Europa das Cruzadas? A Europa já teve fortes influencias cristãs, mas nunca foi cristã.

Por que não existe “nação cristã”?

Ora, o cristianismo em sua essência nunca foi e nunca será de maiorias. O cristianismo é a espiritualidade da “porta estreita” (cf. Mateus 7.14). A fé autêntica é tão elevada que mesmo os mais santos são desafiados por esses valores e reconhecem o seu estado de miséria espiritual. Ora, quanto mais santo alguém for mais pecador se reconhecerá. George M. Marsden escreve:

Em nenhuma sociedade de qualquer tamanho que seja, a esmagadora maioria dos cidadãos foi ou é composta de cristãos radicalmente comprometidos com a fé. Além do mais, até mesmo os maiores santos fracassaram em vencer totalmente pecados tais como o orgulho e o interesse próprio e, frequentemente, fracassaram até mesmo diante do materialismo, do amor ao poder e do amor à violência. Assim, uma civilização, ainda que possa contar com muitos cristãos verdadeiros, manifestará estas características humanas universais. A introdução do cristianismo, na verdade, melhorará a civilização, desde que muitas pessoas e algumas atividades culturais e instituições resultantes sejam modelados pelos ideais mais ou menos afinados com a vontade de Deus. Assim, ao lado das tendências pecaminosas patentes no núcleo de uma civilização, podem existir outras tendências positivas importantes para as quais o cristianismo contribuiu. [1]

E muitas foram as contribuições do cristianismo para o mundo. Os hospitais são uma invenção cristã. Quando inúmeros carros se afastam no trânsito para uma ambulância passar com uma pessoa doente, isso nada mais é do que o molde do cristianismo sobre o tratamento aos doentes. Nem sempre os doentes foram tratados com prioridade. E o que falar do infanticídio dos romanos? No cristianismo o infanticídio se tornou um crime horrendo. E o que dizer das universidades? Sim, o cristianismo inventou a universidade.

Sim, podemos ver “Cristo como o transformador da cultura” como defendia H. Richard Niebuhr, mas nunca veremos uma teocracia cristã. E isso nem é desejável! Nunca veremos um Israel cristão governado por juízes piedosos e reis que fazem “o que é reto aos olhos do Senhor”! É temerário o cristão que sonha com uma espécie de teocracia que Israel viveu. Deus não se relaciona em sua revelação da Nova Aliança com uma nação específica, como fez no Antigo Testamento, mas sim através de Cristo “onde não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3.11).

Não confunda “mandado cultural” com “teocracia cristã”

A teologia reformada holandesa trouxe grande contribuição para o cristianismo ao pregar com forças o “mandato cultural”. A ideia baseia-se no princípio que os cristãos têm a missão de influenciar positivamente a cultura local com os valores do Evangelho. A pretensão é de influência e não de dominação. Logo porque, para o crente no “mandato cultural” é mais importante um cientista cristão do que um político evangélico que “defenderá os valores do Evangelho no Congresso” (essas mentiras que eles contam para abocanharem votos!).

Portanto, é errado o cristão conformado com o mundo. Está errado o cristão que pensa que o seu dever é somente com "valores do céu". Está errado aquele cristão que esconde o seu cristianismo no armário, ou seja, aquele que afirmar ser os seus valores cristãos algo para o íntimo do ambiente familiar e nunca para a manifestação pública. Vivemos em um mundo e podemos influenciá-lo positivamente, mas sempre encarando os nossos limites. Sim, sem a arrogância da teonomia ou da Teologia do Domínio. Como afirma John Piper:

Os forasteiros cristãos não são passivos. Não riem maliciosamente diante da miséria nem se divertem com a cultura imoral. Choram, ou deveriam fazê-lo. Este é o ponto principal: ser forasteiro não significa ser cínico, indiferente ou omisso. O sal da terra não estraga o alimento. Onde ele pode, age para preservar e temperar; quando não pode, lamenta-se. A luz do mundo não se retrai, dizendo “problema seu”! para o ímpio em trevas. Ela se esforça em iluminar, não em dominar. [...] A grandeza dos cristãos forasteiros não é o sucesso, mas o serviço. Estejamos ganhando ou perdendo, nós testemunhamos o caminho da verdade, da beleza e da alegria. Não possuímos uma cultura, nem dominamos a cultura existente. Nós a servimos com alegria quebrantada e uma misericódia resignada, visando o bem do homem e a glória de Jesus Cristo. [2]

Portanto, como lembra Piper, a atuação da igreja é mais serviçal. É no serviço que a igreja mostrará a sua luz. É, por exemplo, na defesa dos direitos humanos (por isso lutamos contra o infanticídio chamado suavemente de “aborto”) e na formação cultural elevada e de qualidade. Mais do que preocupação política, nós deveríamos trabalhar por mais hospitais, escolas e faculdades que reflitam valores cristãos. Hoje, no Brasil, a Suprema Corte tem defendido ideias que vão de encontro com esses valores e a Igreja continua se preocupando em eleger deputados no lugar de incentivar o estudo do Direito.

A teonomia defende a ideia que a Lei (nomia) de Deus (Teo) deve reinar como no Israel do Antigo Testamento nos dias de hoje. Esses parecem que esqueceram a diferença entre as duas alianças. O “mandato cultural” nada tem a ver com isso. “O mandato cultural implicaria no envolvimento cristão em todas as áreas da vida humana, no seguimento da noção dos reformadores de nossa adoração se dá por meio de nossa vida: nosso trabalho e nossos compromissos de cidadania”, como lembra Ricardo Quadros Gouvêa [3].

Por que trabalhar por uma “cultura influenciada” pelo cristianismo e não por um governo teocrático?

O nosso governo é a democracia. “A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”, como resumiu magistralmente o primeiro ministro inglês Winston Churchill. A teocracia foi um modelo da Velha Aliança em um contexto de “nação escolhida” para trazer o Messias ao mundo. A teocracia é uma abominação na Nova Aliança. A democracia, como lembrava Abraham Kuyper, é “uma graça de Deus” [4]. E o famoso teólogo Reinhold Niebuhr dizia: “A capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível; mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária” [5]. E é bom lembrar que a fadada teocracia do Império Romano era, na verdade, uma clerocracia.

Defender valores cristãos na sociedade é de suma importância. A voz cristã, como dito acima, não precisa se esconder atrás de um armário. Por que todos podem expressar suas opiniões e os cristãos devem aderir ao silêncio? Nada disso, em uma sociedade laica todos têm voz.

Além disso, a voz cristã e a formação de uma cultura influenciada pelo cristianismo (“cultura cristã” é tão mítica quanto “nação cristã”) ajuda na preparação dos “pontos de contato” para a transmissão do Evangelho. Esse é inclusive o cerne da apologética cristã, como lembra o filósofo William Lane Craig:

A tarefa da apologética é ajudar a criar e manter um ambiente cultural em que o evangelho possa ser ouvido como uma opção intelectualmente viável para homens e mulheres pensantes. [...] Por isso, é vitalmente importante que preservemos um ambiente cultural em que o evangelho é ouvido como uma opção viva para pessoas pensantes, e a apologética será essencial para ajudar a produzir esse resultado. [6]

Portanto, sem querer impor o cristianismo com uma força tirânica, o nosso papel é influenciar a cultura positivamente. É influenciar com os altos valores do Reino. É trazer bênção para a sociedade por nossas atitudes. Não é imposição: “'Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito', diz o Senhor dos Exércitos" (Zacarias 4.6).

É certo legislar valores cristãos numa sociedade laica?
Constantino acredita no mito!

Quando um defensor da falaciosa teonomia como Mark R. Rushdoony diz que “um dos mitos mais absurdos do nosso tempo é que ‘você não pode legislar moralidade’. Nada poderia estar mais longe da verdade. Toda lei é uma moralidade legislada” [7] ele está certo. Só que Rushdoony esquece o óbvio: nem toda moralidade é legislada, mesmo que toda legislação tenha um fundo moral. Por exemplo, não existe nenhuma lei que puna o ódio não manifesto, mesmo que essa falha moral seja a raiz de toda violência.

Portanto, é certo que valores cristãos sejam impostos aos não-cristãos? É certo legislar valores que dependem a graça divina para a obediência? Bom, não existe uma resposta definitiva, pois é necessário analisar cada caso. A luta contra o aborto é um tido como um valor cristão, mas deveria ser meramente um valor humano, pois assassinar a vida de uma criança é mais do que desafiar um dogma do cristianismo. Mas e as questões de sexualidade? Será certo legislar moralidade nesse sentido? E o que adianta ser seguidor de tais leis exteriores se a conversão a Cristo está distante!

Diante do desafio plurarista, o filósofo cristão Rich Mouw defende: 

Sou cauteloso dos esforços em estabelecer leis cujo propósito primário é forçar os não-cristãos a se conformarem a normas sexuais cristãs. Enquanto faça sentido construir “cercas” legislativas em torno de certas práticas de exploração sexual, as eis designadas a fazer os não-cristãos se conformarem relutantemente a normas cristãs não são satisfatórias. As Escrituras chamam os seres humanos a oferecerem a Deus sua obediência livre. Quando escolhem não fazer assim, temos de respeitar suas escolas mesmo que na nossa opinião sejam escolhas lamentáveis. [8]

Mas isso, em hipótese alguma, significa concordância ou relativismo, como ainda lembra Mouw:

Nenhuma tentativa de ser civil será biblicamente adequada se não dá importância à realidade do mal. Civilidade não pode significar relativismo. Todas as crenças e valores não estão numa paridade moral. Quando mostramos generosidade e reverenciamos as pessoas com quem discordamos sobre assuntos importantes, não pode ser porque não nos importamos com as questões últimas da verdade e da bondade. [9]

Quando lemos Romanos vemos um apóstolo Paulo que denuncia a imoralidade de Roma, mas sem nenhuma pretensão legislativa. E olha que o ambiente de depravação sexual era ainda pior do que hoje. Paulo sabe que a lei é incapaz de salvar. A lei é ótima, mas não passa de um tutor. A lei nos avisa do pecado, mas é incapaz de nos levar a conversão. Portanto, antes que os cristãos tenham uma fome legislativa os mesmos devem lembrar os limites das leis.


Conclusão

A “nação cristã” é um mito. O passado ocidental apresentava mais influência do cristianismo na cultura, mas isso não indica que poderíamos ter chamado o passado ocidental de cristão. Não vivemos uma era pós-cristã, pois nunca tivemos uma era cristã. Sim, devemos lamentar e perda de influência e trabalhar por ela, mas sem nenhuma pretensão teocrática com teonomias.

Gutierres Fernandes Siqueira

Referências Bibliográficas:

[1] MARSDEN, George M. Origens “Cristãs” da América: A Nova Inglaterra Puritana como um Caso de Estudo. em: REID, W. Stanford. (ed.) Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental. 1 ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990. p 319-320. 


[2] PIPER, John. A Vida é como a Neblina. 1 ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2005. p 130-132.


[3] GOUVÊA, Ricardo Quadros. O Anticristo na Bíblia e na História. 1 ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2011. p 348-349.


[4] KUYPER, Abraham. Calvinismo. 1 ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002. p 91.


[5] NIEBUHR, Reinhold. The Children of Light and the Children of Darkness. 1 ed. Londres: Nisbet, 1945. p 6. cit. em: McNUTT, Dennis. Política para Cristãos e Outros Pecadores. PALMER, Michael D. (org.) Panorama do Pensamento Cristão. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. p 439.


[6] CRAIG, William Lane. Apologética Contemporânea. 2 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2012. p 17 e 19.


[7] RUSHDOONY, Mark R. Em Defesa de uma Moralidade Legislada. Morgernismo. Disponível em: Acesso em: 04/06/2012.


[8] MOUW, Rich. Uncommon Decency: Christian Civility In a Uncivil World. 1 ed. Downers Grove: InterVarsity Press, 1992. p 90. cit. em: McNUTT, Dennis. Política para Cristãos e Outros Pecadores. PALMER, Michael D. (org.) Panorama do Pensamento Cristão. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. p 459.


[9] MOUW, Rich. Idem. p 143. Idem p 459.

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