Existem graves problemas sendo levantados pelo hábito de dar e receber "mensagens" pessoais de orientação por meio dos dons do Espírito [...] A Bíblia dá lugar para tal direção vinda do Espírito Santo [...] Tudo isso, porém, deve ser mantido na devida proporção. O exame das Escrituras mostrará que, de fato, os primeiros cristãos não recebiam continuamente tais vozes do céu. Na maioria dos casos, eles tomavam suas decisões pelo uso do que normalmente chamamos "senso comum santificado" e viviam normalmente. Muitos de nossos erros na área dos dons espirituais surgem quando queremos que o extraordinário e o excepcional sejam transformados no frequente e no habitual. Que todos os que desenvolvem desejo excessivo pelas "mensagens" possam aprender com os enormes desastres de gerações passadas e com nossos contemporâneos [...] As Sagradas Escrituras é que são a lâmpada nossos passos e a luz que clareia o nosso caminho. [Donald Gee, pioneiro teólogo pentecostal] [1]
Muitos protestantes tradicionais acusam os pentecostais de não crerem na suficiência das Escrituras porque professam a contemporaneidade dos dons, especialmente os revelacionais. Ora, esse argumento é infantil e ignorante. O aplicado pentecostal sabe que a profecia é possível, mas essa revelação deve ser exclusivamente julgada pela própria Escritura. Ou seja, nenhuma profecia contemporânea pode ser colocada em pé de igualdade com a Profecia Escrita. Nenhuma profecia complementa, substitui ou atualizada as Escrituras. A profecia é uma reafirmação sobrenatural em forma de aplicação da Palavra Escritura. A profecia, também, não é meramente um sermão, mas um sermão pode estar envolto de profecias.
Por que os pentecostais não negam a suficiência das Escrituras? E por que tal afirmação é mera calúnia sem base teórica, mas apenas com bases empíricas que não são a “voz oficial do pentecostalismo”[2] propriamente dito? Ora, logo no início é necessário definir suficiência. O teólogo Wayne Grudem assim o faz:
Dizer que as Escrituras são suficientes significa dizer que a Bíblia contém todas as palavras divinas que Deus quis dar ao seu povo em cada estágio da história da redenção e que hoje contém todas as palavras de Deus que precisamos para a salvação, para que, de maneira perfeita, nele possamos confiar e a ele obedecer. [3]
O conceito de Grudem é bom porque liga a suficiência das Escrituras à revelação para salvação. A Bíblia é suficiente em relação a quê? A suficiência indica que a Bíblia nos fala sobre tudo o que é necessário para a nossa salvação e relação com a pessoa de Deus. Portanto, é necessário ter em mente que a suficiência não significa exaustão de todos os assuntos. Deus não falou “tudo” na Bíblia. A suficiência não quer dizer que Deus não fale além das Escrituras, mesmo que a Sua fala pós-Escritura nada mais é do que uma reafirmação dessa Revelação Especial.
A suficiência radical de alguns cessacionistas, especialmente da escola fundamentalista, induz para a Bíblia perguntas para a quais a Escritura não tem nenhuma resposta. Não é incomum que cessacionistas radiciais vejam na Bíblia, por exemplo, uma ciência da criação. A Bíblia não ensina qual é a melhor dieta ou o melhor sistema político- econômico, nem indica em detalhes científicos como o mundo foi criado. Há quem enxergue até a defesa da pena de morte nas Escrituras, especialmente em Romanos 12. É simplesmente risível, pois não é uma questão trabalhada pela Escritura. É apenas uma observação paulina sobre o sistema da época. Não é incomum que os crentes na suficiência radical da Bíblia a desonrem tratando a Sagrada Escritura como manual político, científico e até estético.
Agora, é necessário cuidado. Nenhuma revelação pós-Escritura pode assumir caráter doutrinário. A revelação é nada mais do que uma aplicação sobrenaturalizada. E, como experiência individual, não é resposta coletiva para a Igreja Cristã. A revelação, muito menos, pode ser blindada na forma de tradição, liturgia, usos e costumes ou tabus comunais. E outro fator importante: com a Palavra Escrita a revelação por meio de profecias, sonhos, visões e interpretações de línguas estranhas se tornaram menos necessária, mas não totalmente descartável. Não é descartável porque o dom espiritual (veja I Co 14.) visa a edificação pessoal. Isso evidencia que em igrejas pentecostais onde há muita manifestação revelacional existe uma imaturidade doutrinária e pessoal, pois o interesse do indivíduo se sobressai sobre o interesse da coletividade na comunidade conhecida como Igreja.
Por exemplo, a própria Escritura nos mostra que Deus se revela pela natureza - a Revelação Geral (cf. Rm 1.19, ou, “pelas coisas que estão criadas”). O apóstolo Paulo usa duas palavras gregas phaneron e ephanerōsen que trazem a tônica revelacional na natureza. É claro que a Revelação Geral é limitada, incapaz de ensinar os rudimentos da fé cristã, mas mostra claramente a grandeza de Deus. Assim, a revelação pós-Escritura se assemelha à Revelação Geral (cf. I Co 14.22).
Gutierres Fernandes Siqueira
Referências Bibliográficas:
[1] GEE, Donald. Spiritual Gifts in The Work of Ministry Today. 1 ed. Springfield: Gospel Publishing House, 1963. p 51.
[2] O pentecostalismo clássico não é papista e nem possuiu um grande documento de catecismo, mas há vozes oficializadoras como a Conferência Mundial Pentecostal que ocorre desde o início desse movimento e, teologicamente, expressa bem o pensamento pentecostal, para o bem e para o mal. Alguns delegados dessas conferências desenvolveram os rascunhos de uma teologia mais sólida como Donald Gee, enquanto outros expressaram certa decadência com David (Paul) Yonggi Cho. O Brasil foi sede da oitava conferência em 1967 com o tema “O Espírito Santo glorificando a Cristo” e será novamente em 2016. Veja: CONDE, Emilio. O Espírito Santo glorificando a Cristo. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1967.
[3] GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática: Atual e Exaustiva. 1 ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1999. p 86.
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