Enquanto escrevo este texto, está acontecendo a 20ª edição da “Marcha pra Jesus” que promete reunir milhões de pessoas em Sampa. Trânsito bloqueado, ônibus desviados, pelos menos quinze carros de som saindo numa espécie de “micareta” evangélica, e milhares de watts de potência para toda a multidão ouvir.
É inegável que vivemos numa época de nítida espetacularização da fé, onde os crentes se sentem cada vez mais atraídos pelo espetáculo e pelo grandioso. Encontros que hoje não arrastam 200 mil pessoas são considerados pequenos. No último ano, a organização da Marcha afirmou que foram 5 milhões de pessoas e neste esperam 6. Ou seja, de cada 2 paulistanos um estaria presente. Há uma disputa velada sobre qual “marcha” leva mais gente.
Ironicamente, a presença das multidões sempre foi um problema no ministério de Jesus. Tanto para a mulher de fluxo de sangue, quanto para o cego de Jericó ou para Zaqueu, a multidão só atrapalhou. As massas seguiam alegremente a Jesus enquanto estava havendo milagres, mas lhes deram as costas, escandalizadas por suas palavras, quando começou a falar da cruz e dos valores do Reino. A mesma multidão que festejou a Jesus na entrada de Jerusalém, com cânticos deHosana, Hosana, alguns dias depois bradava “crucifica-o”.
Na verdade, o Mestre nunca deu muita bola para a massa, pois “não se confiava a eles”. Certa vez se retirou “por haver muita gente naquele lugar” (Jo 5.13). Desconfio que Ele continua fazendo o mesmo hoje.
Proponho que nas próximas edições da Marcha se convide Ed Rene Kivitz para palestrar sobre a “verdadeira espiritualidade bíblica”, Russel Shedd para pregar sobre a “importância das Escrituras na vida do cristão”, e Ariovaldo Ramos para falar do “evangelho integral”.
Proponho também que nos intervalos, as bandas e cantores famosos sejam substituídos por grupos anônimos que reconhecidamente levam o povo à adoração em suas igrejas durante todo o ano.
Puff… como por mágica desaparecerão os “adoradores”.
Mas não estavam ali para glorificarem a Deus?
É preciso ter coragem para dizer que o povo evangélico virou “fashion”, adora um espetáculo e deseja ver os seus ídolos de perto. Observem que tudo aquilo que num passado recente condenava-se no “mundo”, hoje repetimos. Nada contra a técnica e o virtuosismo, mas questiono até que ponto deve ser essa a motivação.
E porque os pregadores sugeridos aqui não seriam aceitos pela organização do evento? Embora sejam homens comprometidos com o Reino, eles não “amarram” demônios em praça pública, não “abençoam” a chave da cidade e nem profetizam o fim do crime ou da prostituição. Eles tão somente pregam a Palavra, pura e simples.
A massa quer ouvir isso? Não, não quer.
Obviamente é um grave erro hermenêutico tentar justificar a “marcha” valendo-se de textos da Antiga Aliança. Quem assim faz ainda continua precisando “pisar com a planta dos pés” para conquistar territórios…. de levitas para adorar… de sacerdotes que vão lhe abrir as portas do céu… de dar 7 voltas em torno das coisas….
Tudo isso são sombras da plenitude que alcançamos em Cristo. É por isso que seria estranho imaginar o apóstolo Paulo marchando com os irmãos pelas ruas poeirentas de Éfeso, cercando o templo de Diana e reunindo ali as autoridades e políticos locais para promover um grande encontro, tocando shofar para declarar vitória e harpistas vindos de Roma, para alegrar o pessoal .
O que o Novo Testamento nos ensina é….
Que andemos em novidade de vida, tenhamos uma nova postura diante do mundo e das pessoas.
Que o povo de Deus caminhe pelas escolas, pelos pátios das fábricas, pelos hospitais, pelos escritórios, não num determinado dia do ano, mas todos os dias, espalhando ali o conhecimento de Cristo através de nossa presença, nossos gestos e nossas palavras.
Que cultivemos tempo, não para marchar, mas para sentar com os velhos, e passar com eles algumas horas para ouvi-los e dar a importância que merecem.
Que nos apliquemos em andar com os simples, conferir-lhes importância e dignidade através de gestos amáveis para com eles.
Que falemos entre nós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais (Ef 5.19).
Na Igreja Primitiva a adoração não se restringia aos eventos, e não terminava após a “performance” no palco, mas expandia-se para a própria vida.
A verdadeira adoração é mais que gestos, posturas, e emoções. Se o nosso louvor e adoração buscados em tantos encontros não gerar uma vida cristã “além-do-normal”, eles serão gestos vazios, presos ao êxtase do “monte da transfiguração”, mas totalmente desvinculados da vida na planície.
Marchar com Deus, hoje, é praticar a justiça, é praticar a hospitalidade, é abençoar as pessoas, é esparramar-se e quebrantar-se diante Dele todos os dias. Significa vivenciar um amor irrestrito, deleitar-se com a Sua Palavra, “embriagar-se” do Espírito e ter um coração agradecido.
Não fui à marcha, mas estou andando calmamente todos os dias com o meu Deus.
Daniel Rocha tem 30 anos de ministério pastoral, formado também em Psicologia e Administração. Atualmente pastoreia a Igreja Metodista Central em Santo André. Há alguns anos escreve reflexões que chamou de "Pão Quentinho", pois esse nome traz à mente a ideia de textura, sabor e cheiro convidativos. Entre e sirva-se à vontade!
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