1

A identidade da Igreja: Secular e Religiosa



Certos teólogos definem o substantivo evkklhsi,a a partir da justaposição da preposição evk (ek), “fora de”, com o verbo kale,w(kaleō), traduzido por “chamar”, “convocar”. Esta primeira posição é defendida por Chafer.1 De acordo com essa acepção, vkklhsi,asignifica “chamado (kale,w) para fora (evk)”.2 Alguns biblicistas, como Karl Schmidt, entendem que o vocábulo procede do verbo compostoevkkalein (ekkalein), “chamar de”, enquanto outros do adjetivo evkkletoj(ekkletos),  “chamado de”.3 Outros ainda advogam a dependência do vocábulo ao adjetivo verbal evklekto,j (eklektos), conforme o logion de 1 Pedro 2.9, “genos eklekton”, “raça eleita” ou “raça escolhida”. O feixe de subordinações do vocábulo evkklhsi,a também inclui a possibilidade de o termo derivar-se do adjetivo klhto,j (klētos), “chamado”, e menos freqüente com o nominativo feminino klh/sij (klēsis), “vocação”, definido por Taylor como “chamada divina para a vida religiosa”.4 O teólogo pentecostal Eurico Bergstén subordina a origem do vocábulo evkklhsi,aa preposição evk e ao termo klh/sij. De acordo com Bergstén, klh/sij diz respeito a chamada ou vocação do crente, enquanto evk “evidencia que por essa chamada fomos tirados das trevas (Cl 1.13)”.5

Todavia, evkkalein e evkkletoj são vocábulos compostos que não estão presentes no texto neotestamentário, embora encontremos os seus cognatos. O adjetivo singular klhto,j e o plural klhtoi/j são usados nalgumas perícopes significativas: no chamado de Paulo para o apostolado (Rm 1.1; 1 Co 1.1); no chamado da igreja romana (Rm 1.7 ver 1 Co 1.2; Jd 1); ou para referir-se aos eleitos (Rm 8.28; 1 Co 1.24). A forma nominativa klh/sij emprega-se apenas uma vez em Romanos 11.29: h` klh/sij tou/ Qeou/ (hē klēsis tou Theou), isto é, “o chamado de Deus”. A literatura do Novo Testamento favorece, se não a etimologia, pelo menos, o conceito de evkklhsi,a subordinado à ação de Deus na história. É o Senhor que chama os homens do mundo para constituí-los “povo de Deus”. Assim o adjetivo klhto,j, o nominativo klh/sij, e o adjetivo verbal evklekto,j (como por exemplo, no texto epigramático de Mateus 22.14), estão relacionados também à etimologia de evkklhsi,a. As raízes desses vernáculos comunicam, direta ou indiretamente, o mesmo conceito do termo deste estudo. Por conseguinte, menos importante é a etimologia de evkklhsi,a para definirmos o conceito neotestamentário de igreja. Interessa-nos mais o sentido neotestamentário do que o secular, muito embora entender a palavra em seu ambiente helenístico e sincrônico seja útil à compreensão bíblica e teológica do termo.

Mas qual a importância do mapeamento do semema ou da extensão de seu campo semântico para determinarmos o significado de evkklhsi,a? Para o etimólogo é de capital importância o estudo das raízes das palavras. O filólogo ocupa-se do estudo arqueológico da língua, da origem e comparação sincrônica e diacrônica da linguagem, dos vocábulos. O linguista também se interessa por essa modalidade e, o mesmo pode-se afirmar do teólogo e do biblicista. Contudo, definir e conceituar um vocábulo a partir de seu étimo, embora útil, não resolve imediatamente o debate. As palavras são construções sociais que nascem, morrem e renascem pelo uso significativo da língua. Conceituar um termo dentro de seu matiz histórico-social, ainda que seja uma tarefa hercúlea, é necessária ao completo entendimento daquilo que se propõe o pesquisador. Fazer o levantamento diacrônico e sincrônico de uma palavra, e compará-la com vocábulos de línguas cognatas agrega valor e conhecimento à pesquisa. Porém, as palavras são produções sociais ligadas a certos condicionamentos lingüísticos e históricos que registram a cosmovisão de uma época. Portanto, nem sempre, apresentam a verdade ligada ao etymo original, mas às construções sociais. Estando a sociedade em constante processo de vir-a-ser, o sentido e conceito dos termos se transmutam dentro da relação homem e tempo, sociedade e sentido.

Uma vez que tratamos em nossa obra Hermenêutica Fácil e Descomplicada, a respeito das vantagens e dos perigos da análise etimológica, creio não ser necessário repeti-los nesse opúsculo. Mas é oportuno afirmar que o sentido diacrônico e sincrônico são mais ou tão importantes quanto o próprio étimo do termo, haja vista a quantidade de palavras cujos significados estão distanciados de sua raiz.

Contudo, devo acrescentar a oportuna observação do teólogo Karl Ludwig Schmidt que, a respeito da etimologia do termo evkklhsi, a afirmou:

A importância do usus e do abususna história de uma palavra fica evidente da seguinte consideração: se quiséssemos reproduzir exatamente a palavra e o conceito bíblico deveríamos sempre traduzir ekklesia por “assembléia”. O fato de isto não ser possível provém de que no terreno lingüístico nada se consegue por meio de medidas, por assim dizer, ditatoriais, mas sobretudo porque em razão da riqueza de ekklesia não podemos renunciar o uso de “igreja” e “comunidade” [...] Em si, deveria ser preferida a versão “igreja” precisamente por causa de sua etimologia: ela é a multidão dos que pertencem ao Senhor, okyriakon ou a kyriakê.6

Antes de Paulo empregar evkklhsi,a nas epístolas, o termo já era conhecido e amplamente usado pelos gregos no período anterior a Cristo. Portanto, evkklhsi,a (ekklēsia) deve ser discutido inicialmente em seu ambiente profano, para somente depois entendermos o sentido que dá azo a reflexão teológica.

Texto extraído da obra “Igreja: Identidade e Símbolo”, editada pela CPAD.

Esdras Costa Bentho é pastor assembleiano, bacharel e licenciado em Teologia com especialização em Hermenêutica; graduado em Pedagogia (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Formação de Professores), e escritor. Atualmente faz pós-graduação em Filosofia Contemporânea - PUC-RJ. 



NOTAS

1 Ver por exemplo CHAFER, L. S. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2003, Vls. 3 e 4, p.405. Ver também COENEN, L. Igreja, Sinagoga. In: BROWN, C. (ed.) O Novo dicionário internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1982, v.II (E-J), p. 393.
2 Nesta descrição, o verbo no presente do indicativo (chamo, convoco) é traduzido para o infinitivo pessoal ou futuro do subjuntivo (chamar, convocar). Nas páginas do Novo Testamento o verbo kale,w é usado cinco vezes no presente do indicativo, na terceira pessoa do singular –  kalei/ (Mt 22.43,45;  Lc 14.13; 20.44; 1 Co 10.27).
3 SCHMIDT, Karl Ludwig. Igreja. In: KITTEL, Gerhard. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, p.54.
4 TAYLOR, W.C. Dicionário do Novo Testamento grego. 9. ed., Rio de Janeiro: JUERP, 1991, p.119.
5BERGSTÉN, E. Introdução à Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, p.252-3.
6 SCHMIDT, Karl Ludwig. Igreja. In: KITTEL, Gerhard. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, p.55.

Fonte: Teologia pentecostal


1 comentários:

comprar seguidor disse...

Muito bom o blog, parabéns!!

Postar um comentário

Comente, seu comentário é muito importante, porém antes de comentar, por favor, LEIA O ARTIGO!

Se não entende ainda sobre o que a bíblia diz sobre julgar, por favor leia os artigos abaixo!

Julgar ou não julgar?

É Pecado Julgar?

É correto julgar, expor o erro e citar nomes?

É sempre uma falta de amor criticar e julgar?

Muito obrigado!